terça-feira, 14 de maio de 2013

ABRAÇANDO A CAUSA DOS “ANUSSIM”


Anita Waingort Novinsky

A Congregação Judaica P´Nei Or que abraçou a causa dos “Anussim”, dedica essa página a grande historiadora Anita Novinsky, que conta o por que do ódio tão longo e tão violento contra os judeus e o por que foi criado um Tribunal exclusivamente para perseguir, prender e punir os judeus, depois de convertidos – forçosamente – ao catolicismo.

1. A Inquisição não foi um fenômeno isolado contra os judeus convertidos, mas acompanhou e fez parte de uma corrente antijudaica que teve início na Antiguidade.
2. Os judeus foram o único povo na história da humanidade, para o qual foi criada uma Corte de Justiça para punir os praticantes da religião judaica.
3. A criatividade judaica, que fez a glória da Espanha medieval, foi completamente apagada.
4. A expulsão da Espanha atingiu os judeus de surpresa, como um raio, pois na véspera da saída, os judeus ainda fecharam grandes negócios.
5. O ódio aos judeus tem vários fatores que podem ter contribuído, porém há um que parece decisivo: o antijudaismo da Igreja.
6. Os cristão-novos permanecem sempre cristão-novos secretos, isto é, no meio do caminho, judeus para o mundo e cristãos para os judeus.
7. O que permaneceu praticamente ignorado foi a história dos judeus e do judaísmo no Brasil . Esse é o novo desafio que os historiadores enfrentam hoje.
8. Denominam-se “B´nei Anussim”, que significa “os filhos dos forçados”.
9. Lamentavelmente, os “B´Nei Anussim” estão sós, como estavam sós durante a Inquisição, como estavam sós sob o Nazismo.
10. Ouvi um velho marrano lamentar: - Sim! Nós somos o rebotalho do mundo.

Um tribunal para os judeus – de Anita Waingort Novinsky
Anita Waingort Novinsky
Laboratório de Estudos sobre a Intolerância Universidade de São Paulo.
o povo judeu está presenciando um recrudescimento do antissemitismo e o futuro é totalmente imprevisível. Um encontro dedicado ao tema Inquisição e cristãos-novos é oportuno e importante, pois velhos mitos, preconceitos e estereótipos estão sendo revividos, e movimentos antijudaicos estão crescendo em nível mundial. Tal fenômeno, passados apenas 69 anos após o Holocausto, é bastante preocupante.
Há uma questão que preocupa a todos nós, cuja resposta, até hoje, ainda não é satisfatória: Por que um ódio tão longo e tão violento contra os judeus? Por que foi criado um Tribunal, exclusivamente, para perseguir, prender e punir os judeus, depois de convertidos ao Catolicismo?
Vou procurar mostrar nesta breve exposição, que a Inquisição não foi um fenômeno isolado contra os judeus convertidos suspeitos de heresia judaizante, mas acompanhou um longo processo, fazendo parte de uma corrente antijudaica, que teve início na Antiguidade, e amadureceu durante o período visigótico e com as leis do direito canônico, culminando com a Inquisição e o Nazismo.
Inicialmente vou fazer um percurso histórico, pois como disse Freud, quanto mais conhecermos o passado, melhor estaremos preparados para o futuro. Vou procurar mostrar os fatores que levaram à criação do Tribunal da Inquisição e o papel relevante que os judeus convertidos tiveram na construção e no desenvolvimento do Brasil.
Por que eu denominei essa conferencia "Um Tribunal para os Judeus"? Por que esse titulo? Os judeus foram o único povo na história da humanidade, para o qual foi criada uma Corte de Justiça, especialmente voltada para punir os praticantes da religião judaica. A ação desse Tribunal contra os judeus, do ponto de vista econômico-financeiro e cultural, teve tão ricas consequências que tem despertado o interesse, não apenas de historiadores, mas também de filósofos, sociólogos, antropólogos e psicanalistas, que têm procurado interpretar o fenômeno marrano, sob as mais diversas óticas.
Vou iniciar com um preâmbulo para entendermos o que significou para os judeus, o êxodo da Espanha, após terem vivido nesse país do ponto de vista cultural e econômico, o mais fecundo período de sua história na Diáspora.
Oitocentos anos os judeus conviveram com os árabes na Península Ibérica, com o povo mais culto e civilizado da Europa e principalmente, com alto senso de tolerância. Quando, no ano de 1492, os reis católicos, Isabel e Fernando expulsaram os árabes da Espanha, também foram expulsos os judeus, aos quais foi dada uma opção, converterem-se ou sair. Parece que, segundo os cronistas, metade do total dos judeus espanhóis se tornou católica, para poder ficar na pátria, enquanto a outra metade, não quis aceitar nenhuma condição, e optou pelo exílio. Partiu, deixando tudo o que possuía: casas, propriedades, negócios, família.
Após viverem na Península Ibérica pelo longo período de quinze séculos, os judeus da Espanha foram declarados "estrangeiros" e proibidos de viver na terra que sentiam como sua pátria. Ao serem expulsos, não foi nem por um momento considerado pelo Rei, pelos poderosos, pelos letrados, os relevantes serviços prestados pelos judeus à sua pátria, seus trabalhos inovadores na ciência náutica, que levaram às grandes descobertas, sua contribuição para a filosofia medieval, para a medicina, literatura, nem seu papel fundamental como mediadores políticos e financistas. Não foi também lembrado o fantástico trabalho dos judeus como tradutores para as línguas vernaculares, dos textos clássicos gregos que permitiram, junto com os árabes, o florescer do renascimento na Europa.
A criatividade judaica, que fez a glória da Espanha medieval, foi completamente apagada, se propagando apenas a imagem dos judeus deicistas, hereges e perversos. A expulsão da Espanha atingiu os judeus de surpresa, como um raio, pois na véspera da saída, os judeus ainda fecharam grandes negócios.
O cronista dos reis da Espanha, Bernaldez, deixou-nos o testemunho de uma das mais dolorosas experiências vividas pelos judeus. Conta-nos ele como os judeus, no seu desespero, trocavam uma casa por um burro e terras e vinhas por um pedaço de pano. Saíram da pátria de seus antepassados, da terra onde nasceram, "pequenos e grandes, velhos e crianças, a pé ou montados em burros, e iam andando pelos caminhos e campos, uns caindo, outros se levantando, outros morrendo, outros nascendo, outros enterrando. Não havia cristão que não se compadecesse deles. E por piedade, os cristãos pediam aos judeus que aceitassem o batismo, para poderem ficar em suas casas, e cansados, alguns se batizaram, mas muito poucos, pois os rabinos lhes iam dando forças e faziam as mulheres e as moças cantarem e tangerem os pandeiros, para alegrar a pobre gente. E foi assim que os judeus saíram da Espanha".
O refúgio mais fácil era cruzar a fronteira e entrar em Portugal. D João III, por interesses econômicos, garantiu-lhes abrigo temporário, prometendo que, passados oito meses, os ajudaria a partir. Os cofres do tesouro encheram-se com o dinheiro que os judeus pagaram por cabeça. Mas os judeus espanhóis foram enganados por D. João III, que em vez de ajudá-las vendeu os mais pobres como escravos. O monarca português cometeu ainda um dos mais bárbaros crimes, lamentado mesmo pelos cristãos. Mandou que se tirasse dos pais os filhos de 2 a 10 anos, para serem enviados às ilhas desertas de São Tomé, na África, onde, segundo o cronista Samuel Usque, foram devorados pelas feras. 
Conta ainda um cronista, que de uma mãe a quem tiraram seis filhos, enlouquecida, se atirou entre os cavalos da carruagem em que passava o rei, pedindo-lhe que lhe deixasse pelo menos, um. Quando os lacaios tentaram tirá-la, D. João III lhes disse: "deixem-na! É como uma cadela a quem tiraram os filhotes". Assim, o amor de uma mãe judia era comparado com o de um cão. 
A agonia dos judeus parecia não ter mais fim. Cinco anos se passaram, e o rei D. Manuel, também respondendo a interesses políticos, ordenou que todos os judeus de Portugal fossem obrigados a se converter ao Cristianismo. 
Agarrados pelas barbas e pelos cabelos, os judeus foram levados a pia batismal. Os mais religiosos clamavam perdão ao Deus de Israel, muitos se mataram, outros mataram seus próprios filhos para que não vivessem na idolatria. Um pai sufocou seus 4 filhos em baixo do "talis". 
Os judeus batizados passaram a ser designados cristãos-novos e inicia-se assim, o que eu denomino "a era dos cristãos-novos". 
O rei D. Manuel, forçando os judeus a se tornarem cristãos, não tirou-lhes apenas a religião. Tirou-lhes a Alma. Tirou-lhes os rituais, as festas, os costumes, as tradições, o idioma, fechou-lhes suas escolas, destruiu-lhes os cemitérios e as sinagogas, tirou-lhes os livros, tirou-Ihes seus nomes, tirou-lhes a identidade. 
Entretanto, nem o batismo, nem a tortura, nem a morte conseguiram apagar-lhes na memória, nem as tradições judaicas - Zakhor "lembre-se". Obrigados a viver como cristãos, os judeus construíram uma "segunda vida", Cuja base era a dissimulação. Durante séculos, gerações e gerações representaram um duplo papel, fingindo ser o que não eram. Para entender a história de Portugal é fundamental que se entenda o que foi, para os portugueses, a "cultura do segredo". O regime totalitário, a repressão, o medo, obrigaram toda a população a esconder seus pensamentos, sua crítica, seus sentimentos. As cerimônias judaicas eram observadas no mais íntimo de seu seus lares. Com o tempo, sem mestres, sem livros, sem escolas, muitas práticas judaicas foram se apagando. O que nunca foi esquecido foi o sentido do "shabat", um dia de descanso, para os homens, para os escravos, para os animais. O "shabat" foi a primeira lei trabalhista da história, cinco mil anos antes do mundo civilizado reconhecer o direito do descanso de cada ser vivo. 
O Judaísmo foi, principalmente, preservado pelas mulheres, pois proibidas as sinagogas, o templo transferiu-se para a casa. A memória que também não se apagou na mente e nos corações dos marranos, foi o "Êxodo do Egito": "lembrem-se que fomos escravos no Egito", simbolizando a ambicionada liberdade.

O Tribunal do Santo Ofício da Inquisição foi introduzido em Portugal, por razões econômico-financeiras, pelo monarca D. João III, no ano de 1536, com a aprovação do papa Paulo III. As razões que levaram o seu estabelecimento foram duas, principalmente a conversão forçada e o segredo. Uma vez batizados, os judeus pertenciam à alçada da Igreja e a prática secreta da religião judaica os tornava hereges do Cristianismo. 
O povo judeu foi o único povo no mundo para o qual foi criada uma Corte de Justiça, um Tribunal, especialmente voltado para os vigiar e punir. Foi a Inquisição que inaugurou um novo sistema para glorificar o extermínio dos judeus, num clima de festa popular. Esses espetáculos populares reuniam massa de gente, que vinha se divertir, vendo agonizar os hereges de Judaísmo, muitas vezes completamente inocentes do crime de que eram acusados. Essas festas, chamadas "autos de fé", eram assistidas pelo rei, rainha, infantes, nobreza e toda população da cidade. As mulheres reservaram, para essas festas, seus mais belos trajes, suas mais vistosas perucas, e o populacho se regozijava vendo os pobres réus desfilarem, nus da cintura para cima, carregando uma vela acesa nas mãos. Ilustres cientistas, médicos, poetas, que humilhados desfilavam como gado para o matadouro. 
Muitos historiadores atribuem o ódio aos judeus à religião. Eu não creio. Vários fatores podem ter contribuído, porém há um que me parece decisivo: o antijudaismo da Igreja. O Código Visigótico é o exemplo mais elucidativo do fanatismo religioso, e os Concílios da Igreja sistematicamente denegriam os judeus. 
Alain Finkielkraut mostrou durante uma de suas conferências, ' que hoje existe um paradoxo em relação ao antissemitismo da Igreja, pois, se de um lado a Igreja tem mantido um diálogo com os judeus, e a "Nostra Aetate" abandonou o conceito de "povo deicida", de outro, o antissemitismo que presenciamos no mundo tem, ainda hoje, raízes cristãs. Repetem-se os velhos mitos, os velhos slogans e as tradicionais acusações. Nem as ideias de tolerância da Ilustração, do século XVIII, nem a abolição do Santo Ofício, nem Auschwitz, no século XX conseguiram arrefecer o ódio aos judeus, Apenas juntou-se, aos motivos que vinham de longe, um novo fator, que foi muito bem copiado pelo Nazismo: o racismo biológico. 
O "Estatuto de Pureza de Sangue" nasceu em Toledo, na Espanha em 1449 e, foi posteriormente adotado em Portugal, como um pretexto para eliminar os judeus convertidos das corporações profissionais, A competição e a rivalidade dos cristãos com os judeus vinha se agravando desde a Idade Média, pois os judeus foram, na Península Ibérica, uma facção importante da classe média, todos alfabetizados em meio a uma população analfabeta. Seu emprego em cargos honoríficos despertou inveja e animosidade também na população menos qualificada. 
Cada nau que saía do Tejo levava fugitivos para o Novo Mundo. O Brasil foi o país que recebeu o maior número de cristãos-novos portugueses e onde foi desmentido o velho mito de que os judeus não têm inclinações para o trabalho agrícola, Foi na agricultura que os judeus mais se sobressaíram em terras brasileiras. Representaram um número extremamente alto da população branca e, segundo informações de agentes inquisitoriais, viajantes e cronistas, chegavam, no século XVII, a três quartos da população colonial, sendo proprietários de grande parte do território brasileiro. 
Os judeus que vieram para o Brasil apresentaram uma grande variedade de comportamentos e de níveis culturais. Tanto havia, entre eles, eruditos, profissionais, como artesãos, trabalhadores manuais, lavradores, e ainda aventureiros e revolucionários. As recentes pesquisas trouxeram novas informações sobre algumas personalidades da história do Brasil, como por exemplo, de que eram judeus, em grande parte, os bandeirantes paulistas. Uma revelação curiosa foi feita sobre a origem judaica de Antonio Raposo Tavares. Sua bravura e personalidade o colocam nas palavras de seu biógrafo Jaime Cortesão, como "um dos nossos". 
De São Paulo alcançou o Amazonas, uma das mais fantásticas façanhas já realizadas na história em todos os tempos. As guerras que travou contra os missionários jesuítas espanhóis lhe valeram todo tipo de adjetivos ofensivos, inclusive de "judeu". O conhecimento que temos de sua origem e de sua personalidade oferece uma nova visão ao capítulo das Missões. 
A guerra que travou contra as Reduções Jesuíticas, destruindo as igrejas, quebrando as imagens não foi motivada, exclusivamente, por razões econômicas como querem alguns autores, mas também por motivos ideológicos, pois os Provinciais das Missões eram comissários da Inquisição de Lima, enviados para prender os paulistas, principalmente, Raposo Tavares entregá-lo à Inquisição. 
Os jesuítas consideravam os paulistas judeus e falsos cristãos. Nessa afirmação não erraram de todo. A declaração de Judaísmo de Raposo Tavares vem claramente expressa quando responde a um jesuíta que lhe perguntou qual lei o autorizava a matá-los. Ao que respondeu: "a Lei que Deus deu a Moisés". 
Uma nova história do Brasil precisa ser escrita, pois durante séculos a historiografia brasileira ignorou a poderosa instituição do Santo Ofício, que durante três séculos atuou em todos os níveis da vida colonial. Não é mais possível escrever história do Brasil sem mencionar os cristãos-novos e os nomes de figuras ilustres como Sergio Buarque de Holanda, Vinicius de Moraes, Joaquim Nabuco, Gilberto Freyre, Glauber Rocha e tantos outros que testemunham a inestimável contribuição dos judeus à civilização brasileira. 
Numa cultura como a portuguesa, onde imperou, durante séculos, a cultura do segredo, é muito difícil nos aproximarmos da personalidade e da alma do marrano. Para chegar aos sentimentos dos cristãos-novos e marranos é necessário decodificar sua linguagem hermética. Num regime totalitário, onde cada palavra pode ser comprometedora, a dissimulação faz parte da vida cotidiana de todo cidadão. Na literatura portuguesa abundam exemplos dessa dissimulação. Uma obra escrita no século XVI por um marrano, Bernardino Ribeiro, intitulada Menina e Moça, que muitos lemos na escola, foi caracterizada, pela famosa escritora portuguesa Agostina Bessa Luiz, de "dissimulação genial". Nessa obra, a palavra "parece" mostra a incerteza da narrativa. Ninguém está certo de nada. A única coisa certa é a "infelicidade". Todas as técnicas que Bernardino Ribeiro utiliza concorrem para impor ao leitor a versão trágica da existência humana, condenada como está, a viver na incerteza. 
Os marranos conseguiram chegar ao norte da Itália, Amsterdã, Turquia e, em grande quantidade, povoaram o Brasil. Com exceção dos anos em que os holandeses ocuparam o nordeste, não houve "retorno" aberto ao Judaísmo. Os cristãos-novos permaneceram sempre cristãos-novos secretos, isto é, no meio do caminho, judeus para o mundo e cristãos para os judeus. 
Na América, vivendo sempre sob o signo da Igreja, desde a infância doutrinada no catolicismo, a assimilação foi muito mais fácil e numerosa do que na Europa, onde os marranos deram origem à comunidades sefaradins, cujos descendentes conhecemos hoje. Assim mesmo, o que surpreende é que houve os que, no Brasil colonial, permaneceram, durante séculos, judeus secretos, persistindo em manter sua identidade judaica. Esse é um fenômeno original na história. 
Sobre as comunidades judaicas na Holanda, Itália, Turquia, Marrocos, muito se tem escrito. O que permaneceu praticamente ignorado foi a história dos judeus e do Judaísmo no Brasil. Esse é o novo desafio que os historiadores enfrentam hoje. Milhares de documentos permanecem inéditos, como por exemplo, o Livro dos que se mataram na prisão ou o Livro dos que enlouqueceram, que continuam desconhecidos. 
A identidade judaica foi mantida no distante sertão, quando muitos dos rituais religiosos já tinham sido esquecidos. A sobrevivência do Judaísmo é o grande mistério que o Tribunal da Inquisição não conseguiu extinguir. 
Um grande número de cristãos-novos, vivendo divididos em dois mundos, acabaram afastando-se completamente da religião, tornando-se agnósticos, céticos e mesmo, ateus. Entretanto, como escreveu Spinoza, cripto judeus, céticos, descrentes, ou ateus, todos fazem parte de um só povo judeu. 
Os marranos podem ser considerados a consciência crítica de seu tempo. Lutaram contra a intolerância em duas frentes: a religiosa, como cripto judeus e a laica como céticos. Suas ideias eram uma ameaça contra o antigo regime e os privilégios de um grupo minoritário que detinha todo o poder. Nesse sistema político e religioso não havia lugar para judeus. 
E agora perguntamos: durante os três séculos de perseguições e torturas, quem defendeu os judeus? Nenhuma nação protestou ou se ergueu a favor dos que eram queimados ou reduzidos à miséria. Os eruditos, escritores e poetas, portugueses e espanhóis, que conseguiram fugir para Holanda choraram em versos a sina de seus irmãos, mas não tomaram nenhuma atitude drástica além de Menassé ben Israel, que tentou convencer Cromwell a deixar os perseguidos judeus portugueses entrar na Inglaterra. O mundo todo silenciou. 
Os famosos pensadores da Renascença admiraram a atitude dos reis católicos em expulsar os judeus e Maquiavel chegou a elogiar esse ato de Fernando e lzabel, "como sua obra mais magnífica". 
Uma única voz se ergueu contra o assassinato dos judeus. A voz de um padre cristão, jesuíta, Antonio Vieira. Vieira teve a coragem de ir ao Rei, ao Papa, para denunciar que na sua pátria estavam matando homens e mulheres inocentes? Quem assistiu ao filme, dirigido por Costa Garras, Amém, pode tecer paralelos, numa distância de séculos, entre o jesuíta cristão e o vigário alemão. Nem Vieira nem o vigário do filme conseguiram salvar os judeus. Examinando a história, podemos ver que os mecanismos que tornaram possível o extermínio de milhares de judeus, durante a Inquisição, e os que vigoraram durante o Nazismo, não foram muito diferentes. 
E, voltando à pergunta inicial, qual a razão dos judeus serem tão odiados? O antissemitismo não é apenas racismo, não é apenas discriminação, não é só preconceito. Antissemitismo é um fenômeno específico, tem uma especificidade e parece, realmente, não ter fim. 
A historia nos ensinou, que de nada valeu a conversão, o abandono da religião judaica e a tentativa de assimilação. O ódio ao judeu convertido e assimilado foi muito mais forte do que aos judeus ortodoxos e assumidos, tanto durante a Inquisição, como na Alemanha. Se compararmos a linguagem, as acusações, a diabolização, usados pela Igreja contra os judeus, nos séculos VI e VII, com a linguagem inquisitorial e a linguagem nazista, ficaremos perplexos de constatar as semelhanças. Como disse Umberto Eco, "se todo passado não tivesse preparado o ódio e as difamações contra os judeus, o Holocausto não teria acontecido". 
E. agora, fazendo um breve mergulho na antropologia brasileira, quero dar-lhes o exemplo de uma outra "história", que corre paralela, nos subterrâneos da nossa sociedade. Séculos se passaram, o tribunal foi extinto e a história dos cristãos-novos ficou esquecida. A historiografia raramente se refere a eles e nada mais se soube sobre o que aconteceu, no século XIX, com os descendentes daqueles marranos, que tão honrosamente suportaram viver sob o regime inquisitorial. Repentinamente, do longínquo sertão, emerge um Judaísmo secreto, dissimulado, mas vivo. Pensou-se que o Judaísmo tinha desaparecido e que a Inquisição havia vencido e os conversos tivessem sido absorvidos pela Igreja. 
Quinhentos e treze anos se passaram, de quando D. Manuel ordenou a conversão obrigatória de todos os judeus de Portugal e, hoje, emergem centenas, talvez milhares de descendentes dos convertidos, que observam cerimônias, rituais e leis dietéticas judaicas, muitas vezes sem saber seu significado. Denominam-se "B'nei Anussin", que significa "filhos dos forçados". Em todo o nordeste vivem descendentes dos marranos coloniais. Seu nível social é diverso, desde ricos fazendeiros até pobres trabalhadores rurais, negros, mulatos, mamelucos. Alguns médicos, poetas (todo nordestino é um poeta), em busca de uma identidade que lhes foi roubada há 500 anos. Mas, lamentavelmente, os "B'nei Anussin" estão sós, como estavam sós durante a Inquisição, como estavam sós sob o Nazismo. Ouvi um velho marrano lamentar: sim! Nós somos o rebotalho do mundo. Ninguém nos quer. Continuamos como há 500 anos atrás. Para os judeus, somos cristãos e para os cristãos, somos judeus. E assim, a história judaica caminha hoje na mesma incerteza de ontem. Mas, quando durante um Congresso em Campina Grande, me pediram para falar alguma coisa, ouvindo os "B'nei Anussin" cantarem Hatikva, em hebraico, a única coisa que eu pude dizer foi: "Vocês são o exemplo vivo da eternidade de Israel". 
Anita Waingort Novinskyl
Pós doutora pela Universidade de Paris I (I983), Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (I970), Livre docente da Universidade de São Paulo, Consultora do Conselho Nacional do Desenvolvimento Científico (CNPq), Possui Especialização em Racismo no Mundo Ibérico, pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (I 977) e Especialização em Psicologia pela Universidade de Sáo Paulo (1958). Graduação em Filosofia pela Universidade de São Paulo (1956). Atua, principalmente, com os temas Brasil Colônia, Cristão Novo, História do Brasil e Tolerância. 
Museu da história da inquisição no Brasil 
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