Cabalá: | |
As duas almas do homem
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“A alma do homem é a vela de D’us” (Provérbios, 20:27)
Ensina a Cabalá que cada pessoa, independentemente de sua natureza ou comportamento, possui duas almas:
1 uma Divina e uma natural. Essas são as almas básicas do ser humano; e não devem ser confundidas com a alma adicional que um judeu recebe durante o Shabat, ou com os cinco níveis da alma – Nefesh, Ruach, Neshamá, Chaya e Yechidá.
É a interação entre a alma Divina e a alma natural e a maneira pela qual cada uma delas se manifesta que respondem pelos pensamentos, palavras e atos do ser humano.
Uma definição simples da alma é que é a entidade espiritual que dá vida à pessoa, cuja manifestação física é o corpo.
Ao contrário da crença popular, o ser humano não é constituído por uma alma única, sagrada, em um corpo profano.
O organismo humano, ensina a Cabalá, é como um campo de batalha, e é a guerra entre a alma Divina e a natural o que define se o indivíduo irá viver, ou não, como um ser humano justo e digno.
A vida, em essência, é uma luta sem fim – não entre a alma e o corpo, mas entre a alma Divina e a natural, também chamada de alma animal.
Uma alusão a este conceito é encontrada em uma porção 2 de Bereshit, o primeiro livro da Torá, onde aprendemos sobre Yaacov e Esav, os dois filhos de nosso segundo patriarca, Itzhak.
Enquanto se encontravam no útero de sua mãe, Rivca, os dois irmãos já estavam em conflito.
Nossa segunda matriarca, não percebendo que carregava gêmeos, preocupava-se com sua gravidez, pois sentia a agitação em seu ventre sempre que passava por um templo monoteísta ou uma casa de idolatria.
Temerosa de dar à luz uma criança com problemas, talvez esquizofrênica, ela foi aconselhar-se com um profeta para perguntar sobre o feto que carregava.
Foi quando soube que levava gêmeos e que eles, ao crescer, constituiriam duas nações que estariam em guerra entre si.
Rivca também foi informada de que ambas as nações não iriam prevalecer simultaneamente: quando uma estivesse no ápice, a outra conheceria o declínio.
A elucidação cabalística para essa famosa passagem da Torá é que os dois gêmeos simbolizam as duas almas que coabitam dentro do ser humano – a Divina e a natural. Elas estão constantemente em luta, pois não podem, de fato, ser simultaneamente vitoriosas.
Por um lado, a alma Divina, sendo parte de D’us Infinito, deseja cumprir a Vontade de Divina dedicando-se ao Eterno e a outros seres humanos. Desconhece o ego, o egoísmo, o vício e a auto-gratificação. Serve a D’us e desempenha boas ações sem nenhuma razão maior – apenas porque faz parte de sua natureza Divina fazê-lo. Seu único desejo é que todas as forças e órgãos do corpo sirvam como veículo de expressão da santidade.
Por outro lado, a alma oponente da Divina, a alma natural, é essencialmente auto-centrada. Preocupa-se apenas com um aspecto, a auto-gratificação. Se estiver indomada, fará tudo a seu alcance para conquistar o que pretende.
A alma natural pode mesmo ser dócil, generosa e capaz de profunda reflexão, mas tudo o que faz é para seu próprio benefício.
Somente se preocupa com suas necessidades e desejos. Seu objetivo é obter prazer, admiração e engrandecimento.
Evidentemente, a alma natural e a Divina desejam o oposto e ambas querem ter o comando sobre todo o ser. Estão constantemente em guerra, esperando prevalecer sobre a outra, para que possam ter pleno controle do corpo humano.
Todo ser humano contém essas duas almas separadas e não, como se pensa, uma alma que age corretamente e um corpo que age com maldade.
A percepção de que possuímos duas almas que se opõem entre si explica certos fenômenos que intrigam as pessoas e que, em geral, nos causam sofrimento: por que, às vezes, somos tão bondosos, e, logo depois, tão malvados?
Como pode uma pessoa religiosa e boa subitamente comportar-se de forma deplorável?
E como é possível que uma pessoa ignóbil e cruel possa, ocasionalmente, realizar atos grandiosos e abnegados?
A resposta a estas e outras perguntas é que tais inconsistências ocorrem pelo fato de uma alma prevalecer sobre a outra. Certamente, o mundo está repleto de hipócritas. Mas, a maioria dos homens de bem que comentem erros não
vivem vidas hipócritas nem esquizofrênicas.
Erramos porque não somos criaturas unidimensionais.
Está escrito no Pirkei Avot – a Ética dos Pais, um livro sagrado de sabedoria judaica – que um homem não pode estar completamente seguro de si mesmo até o dia de sua morte3.
A razão disto é que mesmo um homem genuinamente justo está sempre aberto a alguma outra força dentro dele que pode reorientá-lo. Em algum momento de sua vida, ele até pode vir a acreditar que está sendo guiado apenas por sua alma Divina, mas então, quando menos espera, sua alma natural, que estava adormecida há muito tempo, pode subitamente despertar e subjugá-lo.
Por este motivo, nunca devemos estar muito seguros de nós mesmos, já que a alma natural é astuta – ela se camufla e ataca de surpresa a alma Divina quando o ser humano menos o espera.
Na verdade, todos sabemos que um dos aspectos mais resistentes de nossa personalidade é sua inconstância: certos dias aspiramos alcançar os Céus e aperfeiçoar a Terra; em outros, nos deliciamos com nossos desejos egoístas, e entendemos a Vontade Divina como se impondo sobre o que consideramos nosso, por direito.
A vida é geralmente complicada porque a maioria de nós se empenha por um nível de bondade, decência, até mesmo de santidade.
Mas, com freqüência, mesmo após trabalhar durante anos em nosso auto-aperfeiçoamento, há obstáculos no caminho e as coisas dão para trás – turbulências inesperadas durante as quais fazemos coisas que nos trazem embaraço.
Felizmente, o oposto também é verdadeiro. Enquanto uma pessoa está viva, ela não pode ser espiritualmente derrotada.
Sempre há oportunidade de corrigir erros passados e progredir espiritualmente, e muitas vezes a pessoa é inspirada a fazê-lo pelos Céus, e pela alma Divina que nela habita.
Contudo, a luta entre as duas almas não significa que a alma natural seja algum tipo de maldição que somos forçados a levar dentro de nós.
Uma alma humana que não seja dividida e estática não consegue funcionar, assim como um pássaro com uma asa só não consegue voar.
Sem algo contra que lutar, sem alguma resistência, não pode haver progresso. Assim como não conseguimos desenvolver e fortalecer nosso corpo sem treinamento de resistência e assim como não conseguimos dominar a Matemática sem solucionar problemas cada vez mais difíceis, precisamos, também, ser desafiados pela alma natural para que possamos nos aperfeiçoar. E, portanto, não é justo chamar a alma natural de “alma do mal”. Sua função é desafiar, e ainda assim, por ser fiel a seu Criador, sua esperança mais profunda é que o homem não caia presa de suas tentações.
O Zohar, obra fundamental da Cabalá, oferece uma famosa analogia para ilustrar este conceito.
Fala-nos de um rei que contratou uma cortesã para testar seu filho. A cortesã foi enviada pelo rei para seduzir o filho que fora alertado para se manter afastado de tais mulheres.
Por um lado, a cortesã, que fora enviada em missão pelo rei, precisava desincumbir-se de sua tarefa da melhor maneira possível. Mas, por outro, ela não queria realmente seduzir o príncipe, pois isto faria com que o rei se decepcionasse com o rapaz.
O dilema da cortesã, que simboliza a alma natural, é óbvio. A alma natural nos desafia e nos testa, e, aparentemente, fará tudo a seu alcance para nos fazer cair. Mas, na verdade, torce, com veemência, para nosso sucesso.
Não deseja que nós, filhos do Rei do Universo, cedamos a seus caprichos. Pois, falando de forma metafórica, isso causaria dor e desapontamento a D’us.
Além da alma natural, D’us inseriu em nosso interior uma parte d’Ele – a alma Divina – para poder elevar-nos e para que nós possamos, por nossa vez, elevar o mundo.
Assim como os mineiros descem às profundezas da terra para trazer o valioso minério, também a alma Divina é introduzida no fundo do corpo humano para buscar o que há de precioso no mais íntimo do ser humano.
A interação das Duas Almas
O Talmud ensina que “quanto maior a pessoa, maior sua Inclinação para o mal”4.
Isto significa que as pessoas que têm grande potencial para a santidade e bondade também possuem uma maior capacidade de pecar.
Este ensinamento do Talmud não significa que um homem que comete ações terríveis é essencialmente um grande homem e, com certeza, não desculpa algum de seus pecados.
O que o Talmud quer dizer é que um homem verdadeiramente santo e bondoso será mais tentado a transgredir a Vontade de D’us.
E a razão para tanto é que se a pessoa possui uma alma Divina que se manifesta com força, a pessoa também possuirá uma alma natural que irá atraí-lo com força para o proibido.
Este conceito pode parecer um paradoxo – faria mais sentido se quanto maior o homem, menos inclinado ele fosse ao pecado – mas, na realidade, esta é a Justiça Divina básica. Afinal, por que um ser humano enfrentaria uma guerra espiritual mais fácil do que o outro? Para que o mundo seja justo, aqueles que são dotados de maiores aptidões para o jogo da vida também são forçados a enfrentar maiores desafios.
Desta forma, a guerra entre as duas almas do homem tem intensidade e importância similar para todos.
Se a pessoa nasceu com melhores aptidões para o jogo, ela terá que enfrentar um jogo mais difícil.
Portanto, todos têm que se esforçar para melhorar – cada qual segundo seu nível. Um sábio dotado de extraordinários dons espirituais que não se esforce para viver de acordo com seu potencial pode ser um pecador maior – uma grande decepção para D’us – do que uma pessoa simplória que se empenha para evitar cometer pecados terríveis. O julgamento de uma pessoa inclui seu esforço de ir além de suas aparentes limitações.
Um corolário deste conceito é que à medida que um ser humano fortalece sua alma Divina, tanto mais forte sua alma natural se tornará. Na vida, assim como em qualquer jogo brilhante e criativo, o grau de dificuldade aumenta à medida que se vai passando de uma fase à outra.
Quanto mais elevado espiritualmente se torna o homem, maior se torna sua inclinação para o mal. Quanto mais sábio se torna, mais astuta fica sua alma natural. E tentará levá-lo a racionalizar seus maus atos; tentará confundi-lo a ponto de deixá-lo inseguro se um ato é grandioso e sagrado ou um grave pecado. A alma natural pode mesmo se disfarçar em alma Divina, levando a pessoa a fazer o que não deveria. Por isso, não basta uma pessoa desejar fazer o bem e agir com justiça; o progresso espiritual requer a aquisição de grande sabedoria e muito conhecimento, para que a pessoa possa evitar o risco de ser enganada pela alma natural.
É muito importante notar – já que estamos discutindo aqui questões de espírito – que a espiritualidade em si não é sinônimo de santidade. Muitos de nós temos a crença errônea de que a maioria das pessoas são seres físicos e que entre nós há poucas pessoas espirituais – os bons e iluminados.
A realidade é que cada pessoa é um ser espiritual.
Vivemos mais no reino espiritual do que no físico, pois muito de nossa vida revolve em torno de nossos pensamentos e sentimentos, que são fenômenos espirituais.
Por exemplo, a luxúria é um fenômeno físico, mas o amor, que é a motivação primária para quase tudo que fazemos na vida, é uma manifestação espiritual.
Contudo, toda moeda tem dois lados. O ódio, também, é uma manifestação espiritual, o que significa que espiritualmente também pode haver mal. Um exemplo de um homem profundamente espiritual e completamente malvado foi o profeta Bilaam, que foi contratado para amaldiçoar o Povo Judeu.
O que ele tentou fazer espiritualmente foi semelhante ao que Haman, na história de Purim, tentou fazer fisicamente, que foi aniquilar todos os Filhos de Israel. Portanto, temos que ter em mente que o mal tem muitas manifestações espirituais.
A vitória da alma Divina sobre a alma natural não ocorre quando a pessoa se torna mais espiritual; ocorre quando a pessoa pára de pensar em si própria e começa a pensar mais sobre as demais. A alma Divina se manifesta quando a pessoa realiza boas ações, simplesmente para ajudar outros seres humanos, sem quaisquer motivos pessoais, ou quando a pessoa atende a Vontade de D’us, simplesmente porque é o que D’us quer, e não porque procura uma recompensa pessoal.
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